Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

Por que o racismo é maior que Neymar

Toda vez que um negro é xingado de macaco, meus ouvidos sangram…

Toda vez que jogam banana nos estádios e quadras de esportes, a fruta atinge o meu rosto…

Toda vez que uma criança é abandonada em um elevador e cai, a criança que existe em mim sente a dor…

Toda vez que um profissional é desqualificado pela cor de sua pele, minha autoestima é ferida…

Toda vez que uma mulher trans é assediada, confrontada por amar, esse ódio contamina a minha alma…

Toda vez que balas atingem as costas de uma negra, minha coluna estremece…

Toda vez que um negro morre com um joelho branco em seu pescoço, eu sinto vida esvair-se em mim…

Toda vez que acontece um ato de racismo no mundo contra o povo preto este ato de racismo me alcança. Porque eu sou todos, todas e todes pretos, pretas e pretes do mundo.

Cada vez que uma pessoa negra sofre racismo, todo o povo preto é ferido pelo racismo, e de novo, e de novo, e de novo…

Sou todos os negros

Não importa se a vítima, negra, tenha consciência de sua negritude.

Não importa se a vítima, negra, pense que eu não venci na vida porque sou incapaz, porque me falta mérito.

Não importa se a vítima, negra, acredite que somos diferentes porque ela tem a pele mais clara.

Não importa nem que essa outra pessoa preta pense que o meu falar, o meu gritar, o meu existir é “mimimi” ou “vitimismo”.

Quando esta pessoa, negra, é machucada por causa da cor da sua pele, do formato do seu nariz, do seu cabelo, da sua ginga, eu sinto a mesma dor.

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Eu sou Pelé, que sempre fez questão de ‘ignorar’ o racismo; sou Neymar Jr. – que deve ter ouvido à exaustão que ‘é moreno’; sou Tiago Fonseca, criador de reality em mansão com seu nome, lá da Bahia, no qual ele é o único negro; sou Sergio Camargo, presidente da Fundação Palmares, que odeia Zumbi; sou Fernando Holiday, o vereador da capital paulista que luta pelo fim das cotas raciais, sem sucesso; sou Hélio Negão, que assumiu o nome de família do presidente da República, reeditando uma velha prática dos tempos da escravidão…

Mas sou também e, principalmente, Lázaro Ramos, Taís Araújo, Preta Gil, Maju Coutinho, Flavia Oliveira, Lewis Hamilton, Angelo Assumpção, Seu Jorge, Djamila Ribeiro, Titi, filha de Bruno Gagliasso… e sou todos, todas e todes que se rebelam, denunciam e lutam pelo fim do racismo.

Eu sou antirracista

Ecoo a minha voz e quero que ela invada todos os alto-falantes. Mas não faço coro aos que cobram atitudes antirracistas de todos os negros. Eu não faço coro aos que condenam os casais multirraciais – seja porque o amor falou mais alto, seja porque não dão conta do próprio existir negro. Eu não julgo escolhas individuais dos negros que vivem no mundo.

Eu quero mais e mais buscar o meu espelho ancestral e me reconhecer inteira. E este é um processo desafiador quando sua origem é algum lugar do continente africano, quando seu passado é recheado de histórias de sequestro, tráfico, estupro, humilhação, tortura e morte.

Se é assim em mim, porque não imaginar que é assim no outro, negro como eu?

Tudo tem de ser reconstruído em nós num processo permanente de resgate…

Me disseram que o meu Deus não é Deus de verdade – a ponto de a escravidão nunca ter sido um problema moral para os cristãos.

Só porque prefiro dançar para os meus orixás, rir e celebrar a vida com eles, fui condenada a ‘pagã’, ‘pecadora’. Tudo ligado também ao meu jeito naturalmente sensual  – ‘pecaminoso’ na cabeça de quem vê o mal em tudo. Condenaram meu sexo, meu jeito de amar, disseram que em mim não existe luz. Tudo tem de ser ressignificado em mim, em nós…

E eles, os sequestradores, foram além: me apresentaram modelos, os quais, eu jamais conseguiria alcançar. Me queriam na forma: cabelo esticado, pele clareada, roupas de cores neutras…

E, ainda, ‘insistiram’ na ideia de que eu não tinha inteligência, competência, que era rebelde, vagabunda… Tiraram minha humanidade dizendo que eu não sentia dor… Passaram da chibata para o parto sem anestesia, para a morte por asfixia…

O tempo todo fazem de tudo para que esqueçamos quem somos, nossa linhagem real e não tão real também… Humanos não são como os santos católicos. Humanos são como os orixás, trazem em si luz e sombra, como ensina a Mitologia Africana, como ensina a psicanálise. Nós, negros, somos humanos.

Apesar de ter chegado até aqui na primeira pessoa do singular – às vezes, plural -,  isso aconteceu com todo o povo preto, no mundo: lavagem cerebral! 

Muitos resistem, insistem, e têm aqueles que buscam outras estratégias de sobrevivência, de reconstruir a autoestima demolida. Eu não vou julgar ninguém. 

Eu condeno toda a qualquer forma de racismo. Eu escolho ter uma atitude antirracista na vida.

Sérgios, Tiagos, Neymares, Helios, Holidays…

São muitos os negros que têm necessidade tamanha de aceitação que negam suas próprias dores históricas e, por consequência, seu povo. Mesmo assim, não serei eu a gargalhar quando um ou todos são vítimas de racismo. Minha atitude é antirracista.

Por conta de ter sido chamado de “macaco”, Neymar – que mais de uma vez disse nunca ter sofrido racismo, por não ser negro – ganhou espaço nas redes sociais e não foi poupado…

Eu fiquei imaginando a dor de se descobrir sem lugar, apesar de toda bola no pé, de toda grana, de todas as mulheres claras que ‘conquista’!!! Lembrei Pelé e um comentário mordaz sobre ele, em 1997, reproduzido na imprensa de todo país.

O então ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, declarou:

“Existem dois pretos que são admirados por todo o Brasil. Um é o Pelé, que é o nosso rei sempre. O outro é o rei asfalto, todo mundo gosta do asfalto. É o preto que todo mundo gosta“. 

Como Pelé, Neymar é mais um negro vítima de racismo.

Criminosos são Eliseu Padilha e o jogador uruguaio Alvaro González, apesar de a história ainda estar nebulosa.

Sem ataques

Me propus interagir nas redes sociais para partilhar do meu olhar para os acontecimentos. Fui lembrada por internautas de que ‘foi ele quem criou a situação’. Só que não! Não foi o Neymar quem inventou o racismo.

É verdade, ele tentou ‘disfarçar’ sua negritude – mas não existe disfarce possível. “Se não lembramos de nossas raízes, os racistas nos lembrarão”, alguém escreveu. E que bom que é assim. Quanto mais racistas se manifestam, mais negros tomam consciência de sua essência ancestral.

Atacar a ausência de consciência racial de Neymar é não reconhecer a força do racismo estrutural – não é demais lembrar que Neymar, apesar de ter nascido em Mogi das Cruzes, se criou em Santos, cidade que tem o péssimo ‘hábito’ de chamar as pessoas negras de ‘morenas’.

Atacar a ausência de consciência racial de Neymar é justificar o racismo, dar espaço para agressões racistas, é ignorar o mal histórico que todo o processo escravagista e pós escravagista causou e causa ao nosso existir.

Eu sou antirracista.

Mesmo se ele, daqui uns tempos, insistir em nos renegar – como o Sergio, da Fundação Palmares, ou o vereador Holiday, de São Paulo, ou ainda o baiano Tiago -, podemos escolher não ecoar a dor deles, não votar no caso do parlamentar, não dar ibope, e também não condená-los mais do que eles mesmo já se condenam, mantendo-se escravizados.

“Militância? Conveniência? Modismo? Despertar?” – houve quem questionasse nas redes, devido o aumento do número de atletas negros manifestando-se contra o racismo.

Eu respondo: Que importa? Eu quero é mais!

Mudança no discurso

Neymar pode repensar ou não seu papel como homem preto daqui para frente, mas não será o primeiro. Enegrecer, voltar às raízes, é também uma postura política. O líder negro Malcom X , até os 28 anos, alisava o cabelo!

De qualquer modo, nas redes sociais, o jogador fez uma longa postagem que trouxe à memória a música de Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli, Tributo a Martin Luther King.

Neymar escreveu:

“Eu sou negro. Filho de negro. Neto e bisneto de negro. Tenho orgulho e não me vejo diferente de ninguém…” 

O outro lado da moeda

Eu defendo a discriminação positiva. Eu defendo a valorização sem cobrança, em respeito à minha história de diáspora. Fui parida no mundo, no abandono.

Por mais que queiramos nos aquilombar, somos e seremos negros da África. E a parte de nós que conseguiu furar a bolha da desigualdade econômica, da invisibilidade, nem sempre tem espaço para atuar como nosso porta-voz.

Mas suas conquistas são honras negras. Felizes somos nós se hoje nossos atletas no mundo gritam “basta”.

Todos nos vemos – e incluo os brancos conscientes – sozinhos nas redações dos jornais, na gerência dos bancos, na coordenação de departamentos, na chefia de escritórios, nos sindicatos, orquestras, nos clubes, nas quadras, no cockpit de um carro de Fórmula 1…

E quando acontece um caso de racismo o olhar mais empático com quem é vítima dessa situação acontece, efetivamente, apenas nas redes sociais. O sentimento de abandono, quando o assunto é racismo, permanece.

Arena de luta

O esporte é uma excelente lupa que nos permite olhar para o racismo e as possibilidades de combatê-lo. Até porque, no mundo todo, os mesmos que fazem ‘ola’, gritam ‘gol’ e aplaudem, xingam e desrespeitam.

Um dos casos mais emblemáticos aconteceu em 1968, na Olimpíada da Cidade do México: Lee Evan e Lary James, dois velocistas  americanos dos 200 metros livres, ergueram os punhos na hora do hino nacional dos Estados Unidos – um gesto  tradicional do grupo Panteras Negras. Os dois acabaram punidos – a delegação americana os expulsou do time e o México retirou seus vistos.

Mais de 50 anos se passaram e, agora, os campos e quadras são reconhecidamente arenas de protesto contra o racismo. Em passado recente, 2016, o jogador de futebol americano Colin Kaepernick ajoelhou durante a execução do hino nacional e declarou: “Não vou me levantar e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime o povo negro”.

Sua atitude passou a se repetir na performance de vários jogadores durante o hino americano, mas Collin foi acusado de ‘antipatriota’ e aconteceu sua expulsão silenciosa do futebol americano profissional.

Viva 2020! No basquete, tem protesto tanto na liga feminina como na masculina. Rodadas foram canceladas depois de boicotes de alguns times na esteira do assassinato de negros nos EUA – no lugar de cestas, palavras exigindo medidas concretas contra a brutalidade policial!

Coragem

Lewis Hamilton, piloto hexacampeão de Fórmula 1, tem-se destacado por sua atitude antirracista, indo muito além de camisetas pedindo Justiça. 

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Único piloto negro na principal categoria do automobilismo, o inglês de 35 anos, recentemente anunciou a criação de uma comissão de diversidade no automobilismo, com o objetivo de promover a inclusão de jovens negros em postos relacionados à ciência do esporte. E também cobrou que a F-1 e seus colegas de categoria se posicionem de maneira mais firme no combate ao preconceito racial.

Mas ele segue sozinho nas pistas e precisou de coragem para ir na contramão do “conselho” para não apoiar Colin Kaepernick:

“Conversei com ele na época, usei um capacete vermelho com o número que ele utilizava, mas depois fui silenciado. Me disseram para não continuar, para não apoiá-lo, senão eu iria me arrepender”. 

Máscaras

No Japão, os patrocinadores da japonesa negra Naomi Osaka, de 22 anos, a esportista que mais lucrou este ano, bicampeã na disputa do US Open, não estão nada confortáveis com suas mensagens antirracistas.

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“… gostaríamos que ela chamasse mais atenção com suas habilidades no tênis. Ela assumiu um papel de liderança como uma pessoa negra e o que ela está fazendo é ótimo como ser humano, mas se isso ajudará a aumentar o valor de uma marca corporativa é outra coisa” – declarou um patrocinador japonês ao diário The Mainichi.

Em todos os torneios, em que os tenistas eram obrigados a usar máscaras antes e depois das partidas, Naomi Osaka usou uma máscara com o nome de negros que foram mortos por conta do racismo e da brutalidade policial nos Estados Unidos – homenageou sete vítimas negras em suas sete partidas.

Por sua atuação, a tenista tem sido comparada a grandes ativistas americanos como o pugilista Muhammad Ali, que pôs sua carreira em risco para protestar contra o que considerava injusto ou errado, e o velocista Jesse Owens, que bateu a suposta superioridade racial dos alemães ao vencer a corrida de 100 metros, nas Olimpíadas de 1936.

Mas Naomi segue só nas quadras. Importante não perdermos isso de vista!

Preço a pagar

Naomi e Lewis seguem sós, como segue só o nosso atleta Angelo Assumpção que, na Copa do Mundo de Ginástica de 2015, conquistou o ouro para o Brasil e passou a ser apontado como uma grande promessa do esporte, até que um vídeo veio a público nas redes sociais e mostrou seus colegas, da seleção brasileira de ginástica, praticando o racismo recreativo em forma de piadas.

Na época, após o vídeo, Angelo teve depressão, lesões, temporadas ruins, deixou de ser convocado para a seleção… Recuperou-se. Ajudou seu clube a ser hexacampeão brasileiro na ginástica em 2018…

Mas não foi o suficiente…

Uma auditoria interna, em 2019, revelou uma série de denúncias de assédio moral e injúrias raciais no time de ginástica no mesmo Clube Pinheiros, que aconteceram entre 2013 e 2019, sem que houvesse qualquer punição para os racistas.

O punido foi Angelo que, de um dia para o outro, perdeu tudo – demitido depois de 16 anos como atleta do clube!

Eu sou culpado por me posicionar sobre o que me machuca? Não dá para entender! As pessoas não têm vergonha de cometer racismo. Elas têm vergonha de serem apanhadas. E se você toma uma atitude é porque ‘quer ferrar a vida do cara’ ou ‘vai acabar com a carreira do cara’… Só que o racismo está acabando com a minha vida.” 

Na outra América, os atletas não dependem tanto dos patrocinadores:

“Aqui, os atletas têm muito medo de perder as coisas… Todo dia está morrendo um George Floyd no nosso país. A gente sempre fica olhando para os Estados Unidos e não faz o serviço de casa, com nossos atletas, com a nossa sociedade.”

No Brasil, impera a represália, ainda.

Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, em entrevista ao podcast Café da Manhã, do jornal Folha de S. Paulo, explicou a diferença do discurso racial no mundo do esporte:

“A NBA incentiva clubes e atletas que se manifestem. Acho que esta é a principal mudança que a gente precisa que ocorra no Brasil. Aqui, o clube não fala de racismo e não estimula que os atletas falem.  E a gente sabe que muitas vezes, quando o atleta pensa em se manifestar, alguns dirigentes, ou mesmo empresário que trabalha com o atleta em rede social, marketing, acaba dizendo para o atleta não entrar nesta seara para não se prejudicar.” 

Não é um conselho. É uma ameaça!

Quantas histórias negras já foram apagadas?

Impera a represália! Impera o racismo!

“Sempre tem retaliações… Colocou trança? ‘Ah, isso não é coisa de atleta’. Mas se uma pessoa branca coloca dreads, é bonito…” 

E ainda fazendo eco ao ginasta Angelo Assumpção, concordo que, se de um lado, “o papel do atleta não é só dar resultado” nas quadras, de outro, “não é obrigação somente do negro se posicionar contra o racismo”. Mas quanto estão dispostos a arriscar, com risco de perder, para mudar a sociedade?

O assunto não é esporte, é combate ao racismo.