Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

Por que somos diferentes dos negros norteamericanos?

O racismo no Brasil é singular.

A população negra que desembarcou na terra roubada das mais de mil tribos indígenas, que aqui viviam, foi 10 vezes maior que a desembarcada nos portos dos Estados Unidos da América. Fomos 4,9  milhões de escravizados

Se somos, hoje, 55% do povo brasileiro, não é fruto do acaso.

A vadiagem dos senhores de escravos – sim, porque quase ninguém trabalhava em território nacional – durou 350 anos, Nossa pátria amada foi a última a abolir a escravidão nas Américas. E, entre uma “abolição” e outra, a diferença é de 25 anos. Foi em 1863 lá e em 1888, aqui.

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A abundância ou escassez de novos escravos produziu formas de tratamento e de vida diferentes nos dois países. No Brasil, a reposição da mão-de-obra acontecia com a importação. Nos EUA, “investia-se” na reprodução natural (?), com melhor alimentação e menor taxa de mortalidade.

Vadiagem

No início da coluna, me referi à vadiagem dos senhores de escravos para evidenciar a troca deliberada de papéis no pós-abolição.

Praticamente todos dependiam da mão-de-obra escravizada, inclusive nas cidades. A concentração urbana de escravos no Brasil só é comparável com a do Império Romano. Em 1849, o Rio de Janeiro tinha 260 mil habitantes, dos quais 110 mil eram escravos. Isso dá 42% da população.

No pós-abolição, em 1890, para nos manter à margem, legitimando a exclusão, o Código Penal torna crimes o curandeirismo, a mendicância, a capoeira e a vadiagem (leia-se, o “desemprego” – se é que se pode chamar trabalho escravo de emprego).

A total dependência da mão-de-obra negra, aliás, registra outra diferença no processo de escravismo nas Américas. Nos EUA, a escravidão teve caráter regional, existia uma economia agrícola independente e movimentos abolicionistas. Já no nosso país, havia uma união nacional em torno do tráfico negreiro.

Alforria de araque

Mas Brasil e EUA dão as mãos quando o assunto é a libertação dos negros. O norte dos EUA, não escravista, elege como seu presidente Abraham Lincoln, do Partido Republicano. Contrário à expansão do escravismo, sem pestanejar, em 1º de janeiro de 1863, ele assina o Ato de Emancipação, uma reestruturação do sistema social do Sul. Assim, os negros passam a ser recrutados pelo exército nortista. No Brasil, o mesmo expediente acontece via Guerra do Paraguai. Entenderam?

As Américas transformaram os escravizados em soldados! E ocorreram guerras sangrentas, lá e cá.

Os negros de lá, que sobreviveram, tiveram de esperar até dezembro de 1865 – quando o Congresso proibiu oficialmente a escravidão nos Estados Unidos através da 13ª Emenda – e mais três anos pelo Artigo Suplementar 14, para obter, na lei, direitos iguais aos dos brancos. Em 1870, outro artigo, o 15, “garantiu” a igualdade de direito eleitoral que, em 1965, mais de 100 anos depois, ainda não era realidade.

O filme Selma: Uma Luta pela Igualdade, de 2014, conta um pouco dessa história.

Vale salientar que a questão da cidadania negra é outro ponto de coincidência das Américas. Oficialmente libertos, os negros não tiveram cidadania plena, porque a sua quase totalidade era analfabeta e o voto do analfabeto esteve proibido no Brasil de 1882 a 1985.

É fato que enquanto se assinava o Ato de Emancipação por lá, aqui se aplicava a alforria à brasileira, inclusive para os que sobreviveram à guerra do Paraguai (1864-1870).

O censo de 1872, o primeiro realizado no país, informa que de cada quatro negros, três eram livres.

O dia-a-dia, entretanto, revelava uma linha tênue entre a liberdade e a escravidão. Quase 70% das alforrias eram condicionais, promessas de liberdade depois que o dono ou dona do escravo morresse, no final da colheita…

Além disso, todo negro (como acontece nos dias de hoje, ainda) era considerado suspeito  – na época, suspeito de ser um “negro fujão”. Quem não pudesse comprovar sua liberdade, era leiloado… Resumindo: a experiência de ser escravizado, mesmo sendo livre, era frequente.

Luiz Gama, primeiro advogado negro do Brasil, viveu exatamente isso. Nasceu livre, em 1830, filho de uma negra liberta com o antigo senhor. E foi vendido como escravo pelo próprio pai ao completar 10 anos.

www.juicysantos.com.br - escravidão no brasilFamília Brasileira no Rio de Janeiro, por Jean-Baptiste Debret (1839)

Na mão grande

O fim da escravidão no Brasil aconteceu na marra. Dom Pedro II não queria, mas não podia confrontar a Inglaterra, que deixara claro que só reconheceria a independência se o país acabasse com o tráfico.

E, na época, a Inglaterra era o maior traficante de mão-de-obra escravizada, tinha o controle dos mares, do dinheiro e da diplomacia internacional.

A pressão foi tanta que, em  1831, é votado o fim do tráfico – para inglês ver (é assim que surge esta expressão). Isso porque, sobretudo no Rio, e em menor escala na Bahia e no Recife, se organizam redes de comércio clandestino de escravizados africanos.

Só em 1850 este tipo de corrupção tem fim – do jeitinho luso-brasileiro: os traficantes são prevenidos e tiram seu dinheiro do negócio e a classe dominante tem redução das tarifas de exportação de café, ganha uma estrada de ferro na região cafeeira – o transporte até então feito em lombo de mula – e uma lei que propõe a imigração de trabalhadores rurais.

Aos negros?…

Morte lenta e gradual… Ou a chamada Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871. Declarava livres os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir daquela data. Veio, então, a Lei do Sexagenário, em 1885, de abandono dos idosos negros.

Tudo num esquema bem simples: a escravidão acaba quando o último escravizado morrer. Sem perdas – para os brancos, claro. 

Logo após a Independência do Brasil, José Bonifácio de Andrada, santista e uma espécie de primeiro-ministro da época, envia um projeto para a Assembleia Constituinte prevendo a abolição progressiva.

Mas o movimento abolicionista era uma realidade e pedia liberdade já! 

Democracia rural

O líder André Rebouças lança a proposta de liberdade, com educação, reforma agrária, cobrança de impostos sobre fazendas improdutivas e distribuição de terras para os libertos.

Assustados diante de tal possibilidade, fazendeiros, republicanos e mesmo os abolicionistas mais moderados, dizem “não” e aprovam a lei áurea, rapidamente, em três linhas: liberdade sem direito a nada.

A democracia rural, de Rebouças, engenheiro negro, defensor do meio ambiente, se mantém à deriva até hoje. O Brasil é um dos únicos grandes países agroexportadores que nunca fez reforma agrária.

Elegia ao estupro

Mas a democracia racial do sociólogo branco, Gilberto Freyre, deu – e continua dando – os piores frutos. 

A historiografia norte-americana não guarda em seus escritos o doce retrato descrito por Gilberto Freyre, no livro Casa Grande & Senzala, de 1936, sobre relações amistosas entre as raças no Brasil, apesar do regime escravocrata.

As páginas de seu livro sustentam uma grande, cruel e desumana mentira, baseada na realidade da mistura de raças, gerando a miscigenação do povo brasileiro, sem considerar o estupro sistêmico, metódico, regular, de negras e índias. Não existe nada de “amistoso” na violência, no sexo sem consentimento.

E pagamos o preço da cor do Brasil, baseada na “afeição”, dia após dia.

Uma questão de aparência

O racismo à brasileira é o das marcas fenotípicas. Do tom da pele, do tipo de cabelo, do formato dos lábios, do nariz… E leva muitos de nós, que têm a pele clara, a negar a origem, a cultura, a própria história, para sobreviver.

www.juicysantos.com.br - mulher negra se levanta

“A maior vitória do racismo é quando negros não se reconhecem como negros” – li, dia desses, nas redes sociais.

Então, você, que se propõe antirracista, pare de dizer que não somos “tão negros”  nem que temos “alma branca”! Ser negro não tem a ver com aparência, mas com essência, essência guerreira.

O engodo da democracia racial, além de desumano, nos faz gastar energia demais na contestação de ideias cristalizadas pela ignorância.

Sarará criolo

Nos Estados Unidos, ninguém é discriminado por ter cara de negro.  

Muitas pessoas que se esforçam para disfarçar sua negritude em território nacional, seriam chamadas à realidade assim que pisassem na, hoje, terra de Donald Trump.

E ecoo o vozeirão de Sandra de Sá, cantando Olhos Coloridos, para explicar porque:

“…A verdade é que você – todo brasileiro – tem sangue criolo, tem cabelo duro, sarara criolo…”

Como reforça, nunca é demais refletir a fala do líder negro, escritor e cítico social James Baldwin:

“O mundo não é branco, nunca foi. Branco é uma metáfora de poder”.

Cisão racial

O contraponto à democracia racial tupiniquim é a segregação racial, a separação explícita, que deixa os afro-americanos unidos, próximos, força o investimento numa economia negra. Lá, não existe dúvida quanto ao racismo.

Brancos antirracistas – vimos nas manifestações depois do assassinato de George Floyd, em maio deste ano, sufocado pelo joelho branco de um policial – participam dos protestos do povo preto. Vão além do apoio nas redes sociais.

As conquistas individuais também não separaram o povo negro. Isso é explicitado quando, por exemplo, nos detemos nos nomes dos produtores de filmes que contam histórias de superação de afro-americanos; no número expressivo de negros filantropos que investem em bolsas de estudos para a comunidade negra, em oportunidade de trabalho… Isso desde sempre.

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Vale conhecer as histórias de:

Resistência – sempre!

Tudo o que nós negros temos – lá e cá – é conquista nossa. E esse tudo inclui família, lar, leis, sucesso financeiro…

As Américas, apesar dos 240 anos de diferença entre uma abolição e outra, não criaram um sistema de políticas públicas para inserir os libertos e seus descendentes na sociedade.

Sem direitos humanos, à saúde, à alimentação, à educação, ao trabalho remunerado, à  moradia digna, a condições básicas de sobrevivência, chegamos nos locais onde ninguém queria morar, mas estamos chegando, também, nos locais onde não querem que moremos.

www.juicysantos.com.br - movimento negro no brasil hamilton cardosoJornalista Hamilton Bernardes Cardoso, do Movimento Negro Unificado, na escadaria do Teatro Municipal de SP

Não somos minoria, como nos EUA. Somos a maioria da população e nossa história, como a deles, é única. Não somos cordatos! Como não eram as cozinheiras da casa grande nem todos os que fugiram para quilombos, como o Jabaquara, aqui em Santos, um dos maiores do Brasil.

Não existe passividade do povo preto. Nossa história não começa na escravidão, mas termos sido escravizados faz parte de quem somos, rouba muito da nossa energia até hoje e isso, também, nos dá o direito inalienável, imprescritível, de exigir reparação até nos sentirmos donos desta terra.

Somos resistência em nome da própria sobrevivência. E, de verdade, pela forma que fomos libertos (?) há 132 anos, é incontestável a nossa potência.

Olhem para nós

Quem, como nossos ancestrais, chegou aqui em correntes, como mercadoria. Teve seu nome, sua língua, cultura, deuses e sua história espoliados. Enfrentou humilhações diárias, toda sorte de violência e, depois, foi deixado à própria sorte? Olhem para nós. Nos reinventamos a cada dia. E temos, ainda, força para partilhar um sorriso largo.

Os documentos queimados sobre a nossa origem, a separação de nossas  famílias… Nada nos impediu de nos reinventarmos a partir de quem nos tornamos – negros brasileiros e afrodescendentes.

Dia desses pensava que já tenho uma história para contar para a minha neta sobre as mulheres que vieram antes, incluindo, falar da sua força, que vem da nossa mãe África.

Talvez uma pessoa branca nunca tenha pensado sobre o que é não saber quem foram seus antepassados, nome, data de nascimento, país de origem…

E para terminar ecoo a voz da rapper Bia Ferreira, em alguns versos da música Cota não é Esmola:  

“E não venha me dizer que isso é vitimismo. Não bota em mim a culpa para encobrir o seu racismo (…) Chega junto. Venha cá. Você também pode lutar e aprender a respeitar…”