Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

A potência literária dos autores negros: preta é minha pele, minha vida, minha escrita

Carolina Maria de Jesus, escritora mundialmente conhecida, disse:

“A vida é igual a um livro.

Só depois de ter lido é que sabemos  o que encerra.

E nós, quando estamos no fim da vida, que sabemos como a nossa vida decorreu.

A minha, até aqui, tem sido preta.

Preta é a minha pele.

Preto é o lugar onde eu moro.”

O também escritor Lázaro Ramos,  pedindo licença aos que vieram antes, aos seus, ao nosso povo, complementa este poema:

Preta é a minha alma…

Preto é o meu caminhar…

É saber pertencer a este povo,

que tem muito do que se orgulhar…”

Carolina Maria de Jesus e Lázaro Ramos são exemplos de como somos flor e fruto.

Os dois se encontram na escrita. E a semente da escrita está na África.

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Carolina, catadora de papel, escreveu Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, um clássico da nossa literatura, lançado em 1960, editado oito vezes no mesmo ano. Seu livro abriu uma janela brasileira para o mundo. Tem tradução em 14 idiomas, está presente em mais de 40 países, integra o currículo de escolas estrangeiras e é leitura obrigatória no vestibular.

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Lázaro, ator, apresentador, cineasta, escreveu Na Minha Pele, de 2017, onde conta de sua existência negra, convidando a todos a vestirem a sua pele, a pensarem a sua própria existência.

Militante ativo, na frente e por trás das câmeras, ele também cria histórias negras para crianças, conversa com  o povo preto, debate a questão racial.

Coleciona mais de 30 prêmios, nacionais e internacionais e é o ator negro que viveu mais protagonistas da história da TV brasileira – juntando atuações no cinema, na televisão e no teatro, são mais de 40!

Desde 8 de julho de 2009, ele é o embaixador da Unicef no Brasil, Fundo das Nações Unidas para a Infância, da Organização das Nações Unidas.

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Feminino plural

Como flores e frutos, da escrita, registre-se, que 6 dos 20 livros mais vendidos em julho de 2020 são de autoras negras e abordam a questão racial.

O levantamento, realizado quinzenalmente pela revista Veja, reúne dados de uma centena de livrarias físicas e online.

E a campeã absoluta é uma negra santista: Djamila Ribeiro. A filósofa, escritora, ativista, conferencista e colunista do jornal Folha de S. Paulo, ocupa o primeiro lugar em vendas com o seu Pequeno Manual Antirracista. Ainda Quem tem Medo do Feminismo Negro e Lugar de Fala, de sua autoria, também estão entre os mais vendidos. 

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Djamila dá voz  a temas urgentes como o genocídio do povo negro e o feminismo.

“Minha luta diária é para ser reconhecida como sujeito, impor minha existência numa sociedade que insiste em negá-la.”

As outras mulheres são…

  • a advogada Michelle Obama, com o livro Minha História,  em 7º lugar – a autobiografia de maior sucesso comercial que sem  notícia, com mais de 10 milhões de cópias vendidas;
  • a escritora e poeta Maya Angelou, em 19º lugar, com Eu Sei Porque o Pássaro Canta na Gaiola, primeiro dos cinco volumes da sua autobiografia, onde revive memórias de infância, abandono, assédio e segregação racial, escrito em 1969 e indicado ao Prêmio Pulitzer.
  • a filósofa e ativista Angela Davis, em 14º lugar, com Mulheres, Raça e Classe, um ícone da luta pelos direitos civis da população negra e das mulheres, que discute a impossibilidade da formação de uma nação que não questione a centralidade e urgência da questão racial, uma vez que esta mesma sociedade foi fundada no racismo.

Professora emérita na Universidade da Califórnia, quando no Brasil, a escritora lembrou a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018:

“Muitas das minhas camaradas tombaram durante a luta. Acredito que seja minha responsabilidade testemunhar em homenagem aos que não estão mais entre nós. E afirmar que se permanecemos na luta, eventualmente, alcançaremos a vitória.”

Há, também, um sétimo livro sobre a questão racial entre os mais vendidos. É Racismo Estrutural, da coleção Feminismos Plurais, em 4º lugar. O autor é Sílvio Almeida, filósofo, advogado e professor universitário. Em sua abordagem, ele afirma que o combate ao racismo envolve, obrigatoriamente, economia, política e educação.

Pioneirismo na escrita

Esta conquista só confirma que somos, sim, os primeiros na escrita! E faz cerca de seis mil anos, três milênios antes dos gregos, e paralelamente aos sumérios na antiga Mesopotâmia.

Os povos do Nilo no Egito já escreviam e registravam a sua história em vários tipos de escrita, de acordo com a demanda social.

Dos três principais tipos – conta a designer Horrana Porfirio Soares, que estuda o povo negro na sua área de atuação -, a primeira e mais importante é a escrita hieroglífica, utilizada na impressão de mensagens em túmulos e templos.

A segunda, a hierática, é uma simplificação da hieroglífica para facilitar o trabalho dos escribas na escrita dos papiros. A terceira é a escrita demótica, mais informal, presente na maioria da literatura e registros do antigo Egito.

E muitos outros sistemas de escrita foram desenvolvidos pelos povos africanos antes e durante o desenvolvimento da escrita na Europa, de ideogramas a silabários e alfabetos.

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A escrita romana de hoje é utilizada apenas desde o século VII a.C.

“A África é o maior escritor-fantasma de todos os tempos”, autor desconhecido

Poder da fala

É inegável a forte presença da tradição oral na África. Mas é inegável também seu pioneirismo na escrita.

A citação que, ironicamente, coloca a África como o “maior escritor-fantasma”,  nunca creditada, reflete e resume a realidade de como a história  é contada.

Aliás, uma das estratégias utilizadas para a manutenção do racismo tem sido ignorar toda a contribuição intelectual do povo negro no percurso da história da humanidade, retirando assim qualquer referência para a construção de autoimagem que não seja a de um passado escravagista.

Mas somos ponto de partida. A África é o berço da humanidade, berço de toda a humanidade. Os povos africanos são os primeiros a se desenvolver em sociedade. Isto é fato.

O mundo começa na África. E, para a correção do olhar de todos, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco realizou um de seus mais importantes projetos editoriais com a coleção História Geral da África, à disposição na internet, uma chance de reconciliação com a nossa própria história. 

Intelecto oculto

Assim como na escrita, a África, via Egito, se destaca na Matemática, com os hieróglifos dos primeiros números racionais e o papiro Rhind, para contas básicas e equações. Se destaca na Geometria, utilizada para controlar as inundações do rio Nilo. Se destaca na Arquitetura – a única das sete maravilhas do mundo que perdura é a pirâmide de Quéops.

E, também, na Medicina, com  Imhotep, o médico mais antigo que se tem conhecimento e que viveu por volta de 3 000 a.C., entre outras áreas de conhecimento como a Química.

O povo negro traz o pioneirismo na alma, na essência, e compartilha. E só me repito – à exaustão – porque a escola limita o viver negro à escravidão, ainda. 

Mas voltemos aos livros…

“— Cala-te, oh! pelo céu, cala-te, meu pobre Túlio — interrompeu o jovem cavaleiro — dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos. […] e amaldiçoo em teu nome ao primeiro homem que escravizou a seu semelhante…”

As palavras acima, registradas no primeiro romance escrito por uma mulher e que anteciparia o gênero de literatura abolicionista, estão no livro Úrsula.

A alma negra que as escreveu é da também musicista e educadora maranhense Maria Firmina dos Reis, muitas vezes na vanguarda por ser a primeira a passar em um concurso público como professora, primeira a fundar uma escola mista e primeira romancista do Brasil. 

Completamente esquecida e silenciada pela nossa História, Maria Firmina viveu de 1822 a 1917. E, agora, mais de 100 anos após a sua morte, nesta edição, lhe devolvemos a voz, uma vez mais:

“Sim — prosseguiu — tens razão; o branco desdenhou a generosidade do negro, e cuspiu sobre a pureza dos seus sentimentos!”

Preta é a minha pele, a minha vida, a minha escrita e a escrita do poeta Cruz e Souza, de Elisa Lucinda, Machado de Assis, Zélia Gonçalves, Joel Ruffino, Conceição Evaristo, Elizandra Souza, Lima Barreto,  Mél Adun, Fátima Trinchão, Stela do Patrocínio, Abdias do Nascimento, Adão Ventura, Auta de Souza, Carlos Machado, Castro Alves, Milton Santos, Miriam Alves, Oswaldo Camargo, Nina Rizzi, Solano Trindade, Paulo Colina, Maria Beatriz Nascimento, Teodoro Fernandes, José do Patrocínio, Ana Maria Gonçalves, Paulo Lins, Sueli Carneiro…

E não se impressione. Esta é apenas uma pequena mostra dos escritores e escritora, filhos da pátria.

Negros e negras que “têm várias vozes, não apenas uma”, como ressalta a historiadora, contista e poeta Cidinha Silva.

A dela, na escrita de Um Exu em Nova York, por exemplo, parte das tensões provocadas pela percepção das religiões de matriz africana para desmistificar ideias para discutir racismo religioso e perda de direitos de mulheres, negros e grupos LGBT. É ela quem diz:

“A literatura é uma forma de resistência.”

Preta é a minha pele, a minha vida, a nossa escrita, e uma das maneiras que encontramos de seguir em luta.