Todo João é alguém: a história de Madame Satã, primeira travesti artista do Brasil
Não. Esta não é a história de João Alberto Silveira Freitas, cruelmente assassinado no dia 19 de novembro de 2020 nas dependências do Carrefour de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Nesta coluna, faço minha a voz de Madame Satã, para mim, a primeira ativista preta LGBT do Brasil, além de ser a primeira travesti preta artista do Brasil.
Madame Satã também nasce João – ironia do destino, do latim, Ioannes que, por sua vez, é derivado do grego, Ioánnis, e significa “Deus é cheio de graça”! Mas não para este João, que vem ao mundo preto, pobre, doze anos depois da assinatura da lei áurea, a tal que “libertou” para o abandono o povo preto.
João, aos 7 anos de idade, foi trocado por uma égua, para garantir que seus 17 irmãos tivessem o que comer – o pai morreu e a mãe, viúva, encontrou esta “solução” para saciar a fome da maioria. Mas que não se pense em uma mãe desnaturada…
Firmina trocou o filho por uma égua diante da promessa de que o menino teria futuro, aprenderia a ler e a escrever… E tudo ficou na promessa mesmo. Longe da família, João foi escravizado em uma fazenda.
Passados alguns anos, João foge. Dona Felicidade o ajuda – ironia do destino, de novo. A mulher que, pelo nome, indicava que o mundo sorriria para o menino, o transforma em escravo doméstico em sua pensão.
João foge de novo e, sozinho, é mais um menino de rua no Rio de Janeiro. E, depois, malandro, ladrão, proxeneta, presidiário, protetor de crianças abandonadas, marido, pai, artista…
Madame Satã (filme)
O ativista
Na sua sede de vida em paz, João se defendia do mundo usando, principalmente, golpes de capoeira. E se saiu bem! Com sua identidade ambígua e fluida, João consegue não fazer parte das estatísticas de negros mortos pela polícia – vive até os 75 anos. Mas não foram poucas as vezes em que ficou sem ar!
Muitos dos 27 anos e dez meses que João passou na cadeia têm a ver com a sua luta contra a violência policial e contra a homofobia – em sua época, a expressão nem existia, mas duas coisas que ele não aceitava: uma era ser xingado de “viado” e, outra, apanhar da polícia.
“Essa mania da polícia chegar, bater e começar a fazer covardia, eu levantava e pedia a eles pra não fazer isso. Afinal de contas, se o sujeito estiver errado, eles que prendam, botem na cadeia, processem, tá certo. Agora, bater no meio da rua fica ridículo. Afinal, nós somos seres humanos” – declarou em entrevista ao jornal O Pasquim, aos 71 anos de idade, quando denunciou que a violência maior era contra pobres, negros e homossexuais, suas três identidades.
João nasceu no ano de 1900. Fez esta declaração em 1971 e, sua fala que atravessa séculos, em 2020, é absolutamente atual.
Pessoa
Aos 13 anos, João já tinha experiências hetero e homossexuais, embora afirmasse “gostar mais de ser bicha”- como consta do livro Memórias de Madame Satã, escrito por Sylvan Paezzo, de 1974.
Ele dizia frases do tipo:
“Eu sou bicha porque eu quero e não deixo de ser homem por isso.”
“Sou viado. Mas homem que é homem resolve no soco de esquerda, se defende na canhota.”
João era capoeirista e também se apresentava como Benedita Itabajá da Silva, Josefa e se tratava por “minha pessoa” no lugar do “eu” – como interpreta Lázaro Ramos, em início de carreira, no super premiado Madame Satã, filme inspirado na vida deste arquétipo da malandragem carioca.
Apesar de pernambucano de Glória do Goitá, João/Madame é, até hoje, reconhecido como figura emblemática da vida noturna e marginal do Rio de Janeiro. Ele que residia e frequentava a boemia da Lapa, na primeira metade do século XX, talvez tenha sido seu personagem central.
No meu olhar – que pode ser considerado romântico -, vejo um malandro, um cafetão que, como todos, é luz e sombra: protegia prostitutas, adotava crianças – criou seis -, tinha a sensibilidade de um artista e a violência de quem, mesmo livre, foi abandonado, escravizado, enganado.
João sentia uma raiva profunda, crescente, por saber-se sem direitos – quem, nas mesmas condições, sentiria diferente? Raiva que se misturava com o sonho de brilhar nos palcos, com o sonho de ser respeitado:
“Minha pessoa vai virar um artista consagrado.”
Inspiração policial
A mesma polícia que fichou mais de um milhão de vezes João Francisco dos Santos, nascido em 25 de fevereiro de 1900, filho de Firmina dos Santos e Manoel Francisco dos Santos, “batizou” artisticamente o mais temido malandro da Lapa carioca. E tudo aconteceu dentro de uma delegacia, quando ele tinha 38 anos.
Na verdade, a história desse “batismo” acontece um pouco depois de João sair da cadeia e decidir participar do concurso de fantasias carnavalescas do bloco Caçadores de Veados, no Teatro República.
Com uma roupa inspirada em um morcego típico de sua terra natal, João – de capa, máscara e lantejoulas -, conquista o primeiro lugar. Vira notícia.
Passados alguns dias, vida normal, seguida de prisão por crime de vadiagem – criação do Código Penal, em 1890, no pós-abolição para seguir impedindo o viver negro.
João é detido com um grupo de travestis, recusa-se a dar seu nome, mas é reconhecido como o vencedor do “concurso das bichas”. Imediatamente, o delegado associa sua fantasia ao filme “Madam Satan”, de Cecil B. DeMille, em cartaz na época, e o ficha como “Madame Satã”.
Não demora, a história se espalha pela cidade. E, em pouco tempo, o apelido se integra à lenda.
Os primeiros passos na rua
Ao transformar as ruas em seu lar, ainda adolescente, João fez de tudo em nome da sobrevivência: cometeu pequenos furtos, trabalhou como vendedor ambulante, garçom, cozinheiro, aprendiz de malandro…
Seu primeiro “professor”? Sete Coroas, cafetão muito conhecido na Lapa, que lhe ensinou também truques com a navalha. Quando morreu, em 1923, Sete Coroas deixou João no seu lugar.
Mas, na época, João já sonhava ser artista. Sonho que nasceu em seu coração aos 22 anos, por conta da temporada no Rio da companhia francesa Ba-ta-clan, com seu teatro de revista.
Do rebolado… ao xilindró
A aparição de estreia da primeira travesti artista do Brasil acontece no teatro Casa de Caboclo, na praça Tiradentes, em 1928, com a Mulata do Balacochê no espetáculo Loucos em Copacabana.
E ele aparece rebolando – inspirando-se na amiga Bituca, que se torna conhecida como Carmem Miranda -, em um número clássico de seu repertório, Mullher de Besteira”.
Queria ser a cantora e dançarina americana, naturalizada francesa, Josephine Baker made in Brazil, de quem se dizia “devoto”. Mas sua primeira prisão interrompeu a carreira que mal começava.
Tudo aconteceu após a sua segunda apresentação. João respondeu com dois tiros de pistola à provocação de um vigilante noturno que o chamou de “viado”. Ele foi condenado a 16 anos de reclusão (saiu um pouco antes) e tornou-se alvo preferencial da polícia – isso porque o vigilante que ele matou era policial.
…ao xilindró
No total – entre 1928 e 1965 -, foram quase 28 os anos de entra-e-sai da prisão, por conta dos 10 processos, de um total de 27, nos quais foi condenado.
Seus crimes? Homicídios, agressões, furtos, desacatos à autoridade, resistências a prisão, ultraje ao pudor, porte de arma…
Fora da prisão, mas com ficha criminal, sem estudo e com desejo de vingança permanente dos policiais, João não saia da mira da lei.
Sua identificação em um dos processos, com data de 12 de maio de 1932, dá a exata medida de quem ele era para a polícia:
“Desordeiro. Pederasta passivo. Usa suas sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Não tem religião alguma. Fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Sua instrução é rudimentar (…). É de pouca inteligência. Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta o repele, dados seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social. Ufana-se em possuir economia, mas como não afere proventos de trabalho digno, só podem ser essas economias fruto de atos repulsivos ou criminosos. Já responde vários processos e sempre que é ouvido em cartório provoca incidentes e agride funcionários da polícia. É indivíduo de temperamento calculado, propenso a crimes. Inteiramente nocivo à sociedade.”
Homem de bem
Uma vez, quando saiu da prisão, decidido a mudar de vida, João adotou uma menina e abriu seu primeiro negócio: uma lavanderia. Mas a polícia não acreditou no novo João, tentou incriminá-lo pela morte de um homossexual, o torturou por três dias para que confessasse o crime. Não deu certo. E a lavanderia também não.
Aí, ele abriu uma pensão. A ideia era oferecer abrigo para as meretrizes, pausa para o descanso mesmo. Mas as autoridades acreditavam que a pensão, na verdade, era um prostíbulo.
Chamado para depor – explorar, estimular ou facilitar a prostituição era crime -, levou um tapa do delegado, revidou, apanhou dos policiais. Foi absolvido no caso da pensão, mas condenado a um ano e 6 meses por agressão.
De outra feita, cumprida a pena, decidiu aventurar-se na capital paulista. Atirou em um policial, cumpriu 13 meses na prisão.
Entre Carmem e Satanás
De volta à cena carioca, no auge dos anos 1950, decide fazer um teste no teatro novo da cidade. É aprovado e passa a imitar Carmen Miranda no palco.
Anos mais tarde, após deixar a prisão pela última vez, a imitação de Madame Satã como Carmen Miranda vira show na boate Cafona’s.
Aos 74 anos, Madame Satã ainda brilha nos palcos com o musical Lampião no Inferno, escrito por Jairo Lima, em que interpreta o próprio Satanás.
Sem brilhos nem lantejoulas, em 12 de abril de 1976, um câncer pulmonar mata Madame Satã em um hospital público no Rio de Janeiro, onde estava internado como indigente. Neste dia, ele não teve direito a manchete nos jornais diários da cidade onde viveu. Pesava 46 quilos.
Resgatado pelos amigos, em seu enterro, fez-se cumprir seu último desejo: partir com seu chapéu panamá e com duas rosas vermelhas sobre o caixão.
Depois de Madame Satã
Ainda hoje, Madame Satã é referência, inspira e incomoda.
Sua história foi utilizada pela companhia mineira Grupo dos Dez para debater a homoafetividade da população negra; se revelou em dois filmes – Madame Satã e Rainha Diaba; transformou-se em cifras na música Carangueijo da Praia das Virtudes, seu apelido, da banda de rock pernambucana Nação Zumbi, e é caminho para a reflexão sobre aspectos da sociedade brasileira no livro O Rei da Lapa: Madame Satã e a Malandragem Carioca – Uma história de violência no Rio de Janeiro dos anos 30-50, de Gilmar Rocha.
Seu nome artístico marcou toda uma geração paulistana, na década de 1980, com um “inferninho underground”, cena do rock na cidade. E, em 2015, a escola de samba Portela o homenageou no desfile pelos 450 anos da cidade do Rio.
Sobre o incômodo, registre-se que, em outubro de 2020, seu nome foi apagado da lista que celebra Personalidade Negras, no site da Fundação Cultural Palmares, de onde reproduzo o texto abaixo nas aspas:
Tudo remete à ironia de Madame, o “exímio cozinheiro e grande folião, que na boemia, além da malandragem e da marginália, conviveu e fez amizade com muitos artistas que integraram a Era de Ouro das rádios nacionais (…)”.
“A figura de Madame Satã mesclava a virilidade, que constitui a persona do malandro, sua homossexualidade e as performances artísticas nos carnavais. E some-se o fato de ter sido casado com a mesma mulher desde seus 34 anos.”
Todo João é alguém.