Texto porJuicy Santos
Santos

Documentário Pelé: o reinado de sua majestade para a geração da Netflix

A cena descrita a seguir está, neste exato momento, acontecendo em algum lugar no mundo – talvez na própria Santos.Em uma quadra (de areia, cimento, de um condomínio, colégio ou terreno baldio), duas crianças jogam bola. Uma delas, com a camisa do Barcelona, faz o famoso drible da vaca no outro, com a camisa do Real Madrid – ou, quem sabe, com a da Juventus.

“Mais uma linda jogada de Messi, o melhor do mundo”, vibra o primeiro garoto ou garota.

“Não, o melhor é o Cristiano Ronaldo!”.

“Todo mundo sabe que o Messi é o melhor da história”.

“Claro que não! É o Cristiano!”.

O tempo fecha. A alegria acaba. A amizade estará para sempre marcada para uma divisão inconciliável. Até a bola rodar novamente e tudo ser esquecido, ainda que não exista qualquer concordância.

Porém, muito além da miopia da juventude (com a sua certeza de tudo saber e a ignorância daquilo que veio antes), há quatro letrinhas que venceriam facilmente aquela discussão: Pelé.

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Há uma esperança para isso mudar. É que, após mais de 40 anos da aposentadoria do ex-jogador, as gerações que vieram depois ganham uma nova oportunidade de conhecer aquela figura mítica do esporte bretão.

Nesta terça, 23, estreia na Netflix o documentário Pelé, que retrata a carreira de Edson Arantes do Nascimento.

Documentário Pelé na Netflix

Considerando o poder da plataforma de streaming, com mais de 200 milhões de assinaturas em todo mundo, o nome de Pelé chegará para aqueles garotos com o mesmo peso da Champions League, o campeonato europeu de clubes que atualmente seduz mais do que nossos certames nacionais. Mais do que números, mostrará a importância do Atleta do Século dentro das quatro linhas.

A direção é da dupla Ben Nichols e David Tryhorn, sendo que o segundo dirigiu o documentário esportivo Crossing the Line e produziu a série documental Tudo ou Nada: Seleção Brasileira, do Amazon Prime Video.

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Uma visão de fora

Como você vê, eles entendem de futebol e esportes. Porém, são gringos – mais exatamente, britânicos. Isso agrega uma nova camada de percepção, deixando de lado eventuais ufanismos, estando genuinamente curiosos em entender a importância e o legado deixados por Pelé.

Por isso, Pelé se difere bastante do documentário anterior sobre o ex-jogador, Pelé Eterno. Ignora-se a vida pessoal e detalhes muito específicos da carreira.

Nichols e Tryhorn se empenham em criar um arco evolutivo para o protagonista, quase que como uma jornada do herói, artifício muito usado em Hollywood para construir narrativas com apelo junto ao público.

Veja só: temos a derrota da Copa do Mundo de 1950 para o Uruguai em casa, com o pequeno Edson prometendo ao pai que seria campeão mundial. Oito anos depois, ele vence a primeira Copa. E, em 1962, a segunda, ainda que contundido. Vem a eliminação de 1966, a vontade de desistir, o retorno e o título de 1970 – isso sem antes do clímax ao derrotar o mesmo Uruguai e de ver a Itália empatando a final. Tem-se, assim, uma narrativa redonda, que deixaria o maior pesquisador do conceito da jornada do herói, Joseph Campbell, orgulhoso.

(Antes que os mais jovens me acusem de spoiler, tudo isso é história.)

Infelizmente, esses méritos do filme se tornam os seus principais problemas, também.

E o Pelé do Santos?

Guiados pela visão do futebol de hoje e pela necessidade de criar esse monomito, a jornada do herói, a dupla de diretores dá toda a importância (necessária) para a Copa do Mundo, mas pouco entram nas conquistas do Santos Futebol Clube. Em uma época no qual o esporte era muito mais regional, o que o clube fez – desfilando as suas habilidades pelo mundo e empilhando títulos – deveria ser mais valorizado.

Chegam a, também, ignorar dois fatos que levaram à queda do técnico da Seleção na preparação para 1970.

João Saldanha, além de ser filiado ao Partido Comunista Brasileiro, se recusou a convocar Dario Maravilha, pedido do então ditador Emílio Garrastazu Médici – causando a ira do governo militar. Ambos os fatos não são citados.

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Pelé e a política

Ainda assim, o documentário Pelé dá espaço para um tema polêmico e pouco abordado em outras produções envolvendo o ex-jogador: o seu envolvimento com forças políticas.

Em mais de um momento, o longa-metragem retrata a situação política e social no Brasil – ainda que floreie muito o período pré-1964 -, incluindo como os regimes usaram o sucesso do esporte e o Rei do Futebol para ganhos políticos.

Pelé não se furta a responder perguntas difíceis sobre o assunto. Porém, deixa claro que sempre procurou se manter apolítico, aceitando convites para eventos do qual fosse o mandatário. Não por menos, o ex-atleta foi ferramenta de divulgação da ditadura militar e também ministro do governo Fernando Henrique Cardoso, um dos perseguidos por aquele regime cívico-militar.

Ainda que não tente fazer um juízo de valor da postura de Pelé, o filme ressalta que pessoas foram presas e mortas por motivos torpes naqueles tempos. E que, justamente por não ter posicionamento, Pelé se posicionava.

Curiosamente, mesmo com todo esse enfoque para a ditadura, o longa ignora dois dos três momentos mais políticos da vida do Atleta do Século. Além disso, passa muito rapidamente pelo terceiro. Refiro-me a quando Pelé pediu, após seu milésimo gol, que olhássemos pelas crianças e pela educação delas; a quando pediu mais amor ao mundo em seu discurso de aposentadoria, em Nova York; e quando foi justamente ministro do governo FHC.

“Pelé disse love”, cantou Caetano Veloso. Mas ninguém ouviu. Ninguém.

* Renan Martins Frade é jornalista especializado em cinema, TV, streaming e entretenimento. Foi por 11 anos editor do Judão e escreveu para veículos como UOL, Superinteressante e Mundo dos Super-Heróis. Também trabalhou com a comunicação corporativa da Netflix. Hoje, é o editor-chefe do Filmelier, o portal dos filmes online e nos cinemas.