Uma história de empreendedorismo com o Chorão
Em 2018 eu devorei um livro que aguardava com ansiedade: Se não eu, quem vai fazer você feliz? da escritora Graziela Gonçalves. Quem julga o livro pela capa e está esperando uma história de amor, saiba que o livro traz questões sobre como construir uma marca, como se reerguer múltiplas vezes, como liderar (ou não liderar) e conflitos de gestão.
Tirar esses insights do livro foi um processo similar à arrancar casquinhas de feridas cicatrizadas pelo tempo. Foi simples porque vivi parte da história. E foi difícil justamente por isso.
Confesso que nunca havia passado pela experiência de ler e pensar “Ah, mas eu lembro disso” e no parágrafo seguinte estar lá, como personagem. Sem eu sequer cogitar essa possibilidade, meu nome é citado no livro algumas vezes pela Grazi.
Se não eu
Mantenho um hábito: sempre que surge algo na cidade, vou lá conferir. Hábito que já existia bem antes do Juicy Santos. Pode parecer uma frase meio caipira (para não dizer caiçara) – mas a curiosidade felina habita em mim. No início dos anos 1999 lá estava eu, adolescente e ávida por descobertas. A moda clubber despontava, o estilo streetwear ganhava novos públicos e conheci uma loja que me encantou. A Superfox representava estilistas nacionais numa Santos cheia de marcas americanizadas.
Não demorei para virar uma cliente (bem duranga, diga-se de passagem) que saía da escola e passava por lá. Primeiro conheci a Mariela, que tinha praticamente a minha idade. Depois conheci a irmã, que era a dona da loja. Nessa época eu ainda tinha na cabeça que faria um curso de moda e por isso comecei a customizar umas camisetas. Por ironia do destino, hoje eu também tenho uma marca de camisetas.
Com uma boa cara de pau, fiz a seguinte oferta para as duas meninas: “Posso deixar minhas camisetas aí? O que vender vocês me pagam”. Elas toparam e dei pulos de alegria. Eu tinha as ideias, comprava as camisetas no varejo e minha mãe executava as criações que envolviam bordados e customizações. Era divertido e eu gostava de brincar de criar e vender coisas.
Mas muito melhor do que isso, dessa história saíram duas grandes amigas.
A loja da mina do Chorão
No início dos anos 2000 eu continuava a fazer camisetas e entrei na faculdade de publicidade aos 18 anos. Quando me perguntavam o que eu fazia e meus hobbies, dizia que estava no estágio e ganhava uns trocados fazendo sites como freelancer, desde os meus 16 anos. Eu completava falando das camisetas com orgulho, dizendo que elas eram vendidas na Superfox.
Um dia alguém comentou na sala de aula: “Ah, a loja da mina do Chorão”.
Eu não sabia quem era Chorão.
Isso pode parecer muito cômico para alguém que morava na Santos dos anos 2000. Mas eu era alienadíssima com aquela categoria de música, visto que a assistia apenas ao Disk MTV e aos reality shows da E!.
Talvez eu seja uma das pessoas que amou a Grazi muito antes de saber que ela era uma espécie da primeira dama da música jovem brasileira. Eu me apaixonei por uma Graziela amiga, que era abarrotada de referências culturais, um radar de repertório em todos os sentidos. Amava passar tempo na loja, ouvindo as novidades da Grazi, suas viagens e tudo sobre seu universo. Alguns anos mais nova, me sentia uma aprendiz daquele mulherão que já tinha vivido muito mais que eu.
Ao abrir o livro Se não eu, quem vai fazer você feliz? um trecho dessa história estava ali. Ver meu nome nas páginas sobre a Superfox me causou uma espécie de materialização da felicidade. Já dizia Henry Thoreau que “a felicidade só é real quando é compartilhada”. Fiquei muito feliz dessa memória existir, estar compartilhada com a Grazi e agora com mais muito mais gente.
A loja fechou e poucos anos depois eu co-fundei a Mkt Virtual. Coincidentemente a empresa ficava na sobreloja do prédio onde foi a Superfox. O prédio é um conjunto imenso em Santos, típico dos anos 60 com galeria de lojas, sobrelojas e apartamentos residenciais. A Lela, irmã da Grazi morava ali e por sorte era amiga de um dos funcionários da Mkt Virtual, o que fez com que nos reaproximássemos rapidamente.
História paralela
Pouco tempo depois, em 2001 a Mkt Virtual ganhava um de seus primeiros clientes, uma casa noturna em Santos que também transformou a história da vida noturna da cidade. A Mythos era um empreendimento de outras duas irmãs e suas famílias – curiosamente uma delas (Veri) era casada com o guitarrista da banda Charlie Brown Jr., o Thiago Castanho.
A essa altura do campeonato eu já sabia bem quem era a banda. Alguns amigos adoravam o som e eu nem ligava muito. Achava o Chorão truculento e tinha um certo medo dele, sem qualquer razão. Mas a banda fazia um sucesso tremendo e eu comecei a me interessar em entender melhor tudo aquilo. Sondei a Veridiana da Mythos sobre o site da banda. Depois comentei com a Grazi que eu poderia ajudar.
Mas naquela época a Internet era uma crescente e não uma realidade.
A Mkt Virtual seguia sua batalha dos seus estágios iniciais e demorou dois anos para que eu voltasse a tocar no assunto. A banda fervia com o acústico MTV, com presença em TV, com toda a exposição midiática.
Em 2003 cheguei a levar uma proposta de layout para o Chorão, que na época já tinha virado o Alê, de tanto que eu ouvia a Lela falar dele. Era um layout colorido, ambientado na praia de Santos, na época em que o Macromedia Flash era uma espécie de ferramenta da época romântica da Internet.
Tive um feedback positivo mas nada extasiante perto da expectativa que criei. E comecei a pensar: por que esse cara escolheria a minha empresa para fazer isso? A Mkt Virtual era muito pequena, incipiente e a banda já era mega renomada. E isso multiplicou minha insegurança.
Esse projeto ficou na mão deles mais de um ano e só depois de muitos anos eu entendi porque. Os caras viviam uma crise sem tamanho e no final de 2004 soube da separação, anunciada ao público em 2005. Nesse momento pensei que seria o fim do meu sonho de fazer o site da banda.
E até da própria banda.
Só que não
Aquele momento foi justamente o que trouxe uma das grandes oportunidades da história da Mkt Virtual, à qual eu sou muito grata. Em maio de 2005 fizemos uma primeira reunião retomando o projeto que foi começado em 2003. Dois meses depois fechamos o negócio. Em agosto começamos a trabalhar junto com o Jerri Rossato, fotógrafo talentoso e amigo incrível que o CBJr me apresentou. Em 2 de outubro o site foi ao ar, com direito a um merchan no Domingão do Faustão.
O que pouca gente sabe é o que aconteceu na madrugada anterior. Até os últimos minutos, no dia 1 de outubro de 2005 o Chorão estava lá na Mkt Virtual vendo e aprovando as últimas coisas. O cara realmente fazia a gestão dos detalhes. Lembro que nesse dia tinha o casamento de um primo, que eu deixei de ir obviamente.
Saindo da festa, meus pais passaram lá no escritório com a minha irmã, ainda adolescente, para garantir uma foto com o moço. Eu adoro essa em particular, com a minha mãe, Chorão e ao fundo eu apresentava o site para o meu pai.
E o trabalho seguiu até o dia amanhecer. Nós estávamos com um medo sem tamanho daquilo tudo dar errado. Não havia plano B e era uma época com vibe de start up, tudo enxuto e com boas doses de sobrevivência diária. A notar pelas minhas olheiras na foto.
Catalisador de empreendedores
Assim seguimos com as coisas dando muito certo nos próximos anos. Cada palavra de Se não eu, quem vai fazer você feliz? me trouxe uma memória boa e uma constatação.
O Chorão era um cara que catalisava o empreendedorismo.
Catalisar significa alterar a velocidade de uma reação e ele fazia isso no melhor e no pior dos sentidos. No meu caso, posso dizer que soube aproveitar da melhor maneira possível. Eu abraçava cada oportunidade que ele trouxe para a Mkt Virtual.
O site oficial da banda.
O fato de termos um community manager em pleno 2006 só para cuidar do relacionamento com a comunidade digital do CBJr.
E finalmente um dos pedidos mais inusitados de todos:
Quero que você dirija esse clipe.
Chorão sabia que eu não tinha experiência alguma nesse sentido, mas antes de eu titubear me lançou um “Se vira, você sempre dá um jeito para as coisas e eu gosto do seu trabalho”. Eu também sinto que existiu um bom estímulo da Grazi ali, além de uma visão que esse clipe deveria ser dirigido por uma mulher. Com a ajuda de Afonso Poyart, que anos depois se consagrou um dos grandes diretores brasileiros de cinema, inclusive fora do Brasil, nós entregamos o projeto que ainda rendeu uma indicação ao VMB 2006.
Semente plantada
Dois anos depois, ele fez o mesmo pedido com o clipe Pontes Indestrutíveis e dessa vez faturamos o Prêmio Multishow 2008. Detalhe: ninguém foi buscar o prêmio no palco, hahahaha. Mais do que isso, nessa época eu passei a desbravar um mundo novo e querer produzir audiovisual, uma das sementes plantadas para que nascesse a Mokotó Filmes e Histórias.
No meio desse processo tive que trabalhar muitas madrugadas com a equipe. Lembro de um dia em que estava no nosso antigo escritório e por volta das 3 horas da manhã o telefone tocou. Era o Chorão que queria discutir mudanças no clipe.
Levemente (bem levemente!) envergonhado pelo horário ele perguntou se ele não estava incomodando. Eu disse que não, que estava no escritório justo trabalhando no clipe. Ele respondeu:
Você é diferente. Você é guerreira, né?
Fiquei emocionada quando li nas primeiras páginas do livro, em um dos primeiros encontros entre Chorão e Grazi, ele comenta após uma longa conversa: “Você é diferente, menina”.
Diferente talvez fosse o maior elogio e voto de confiança que o Chorão poderia dar a alguém. Na época eu não percebi isso, mas notei que ele era um cara que reconhecia o esforço de quem corria na batida dele. Reuniões em horários inusitados, pedidos em cima da hora, atrasos e esperas eternas, mudanças intempestivas, tudo era uma grande aventura.
No fundo ele era um cara que também estava aprendendo a fazer gestão do jeito sobrevivente dele – e virou um prisioneiro do próprio negócio que criou, carregando sozinho suas frustrações e solavancos.
Ao longo de todo o livro é possível abstrair com as noções de erros e acertos do cara. Gestão mão pesada, parca inteligência emocional, planejamento sempre em tempo real, explosões em momentos pacíficos eram algumas das características que levaram aos piores momentos da banda.
Em compensação a capacidade de se reinventar mesmo quando pessoas importantes abandonavam o barco, a visão esférica do que deveria ser uma marca de entretenimento (e não só uma banda) eram traços fortes do Chorão como empreendedor.
Tudo virava música no fim das contas. Eu gosto muito de três delas, como a menos conhecida Cada Cabeça Falante tem sua Tromba de Elefante, Na Palma da Mão e a óbvia Tamo Aí na Atividade.
Respeito todo mundo que me trata com respeito e tal / Salve, salve molecada que ainda tá com Charlie Brown / Porque o malandro verdadeiro sabe que o respeito / Vem na frente do dinheiro.
Para mim sempre esteve claro como Grazi operava uma mentora do Alexandre, munindo-o de referências de vanguarda, de cultura, de arte e sinto que a responsabilidade de criar um olhar mais sofisticado no cara foi dela – e de mais ninguém.
Além disso era ela que oferecia as cargas da inteligência emocional que o cara precisava.
Aquela frase “por trás de um grande homem existe uma grande mulher” que eu erroneamente falei algumas vezes quando me referi à eles, deveria ser: “por trás de uma grande mulher existe uma melhor versão de um cara em formação”.
Diferentes
O livro da Grazi me trouxe muitas memórias boas mas também uma visão sobre o quanto de empreendedorismo, de boa e de má gestão existiu nessa história. Com o distanciamento da minha fase de videoclipes – e depois de muitos anos do falecimento do Chorão, que se foi em 6 de março de 2013, as feridas ainda tem casquinhas que já estão bem cicatrizadas.
O livro Se não eu quem vai fazer você feliz? é um tributo aos “diferentes”. Aos muitos que enxergam antes, que não são lógicos, aos que querem viver como acreditam. Que sonham mesmo sem ainda ter ferramentas para realizar esses sonhos.
O livro enumera fracassos, derrotas e tragédias de maneira honesta e leve. De processos trabalhistas injustificáveis até a incapacidade de assumir erros de quem errou muito. De paranoias, vícios e transtornos mentais que eram pouco falados há 15, 13, 10 anos atrás.
De um líder que ao mesmo tempo inspirava tantas pessoas, provocando admiração e respeito – fechava-se em seu escritório com os fantasmas da insegurança, do medo do fracasso. E de uma necessidade de aprovação absurda, que por séculos paralisou tantas mulheres e hoje ferra uma geração inteira que busca incessantes likes, elogios através poses pouco verdadeiras em suas contas de Instagram.
Chorão era diferente de todos e ao mesmo tempo igual a tantos de nós. Como legado deixou o “eu não vim para me explicar”, potencializou negócios pelo Brasil (incluindo o meu), gerou milhares de oportunidades e sofreu muito, como todos que tem coragem para comprar a briga do ser diferente.
Ele me ensinou a receber um dos melhores elogios que alguém pode dar.
Você é diferente, menin…
Talvez seus próprios pais já tenham te preparado pra isso quando disseram que “você não é todo mundo”.
Mas, me diz então / O que da vida posso ter? / Como o mundo deve ser? / Com as balizas do nosso sistema
Chorão é puro suco de growth hacking da vida real, onde namoradas se fazem de RP de bandas que ainda mal existem.
Onde tragédias acontecem em cima do palco.
A vida segue.
E as músicas continuam a tocar em cada canto dessa cidade e de todo o Brasil.