O último jornal da CBN Santos
Uma redação de jornal funciona como um termômetro do ser humano.
É o endereço perfeito para se aprender um pouco sobre comportamento, dos jornalistas aos entrevistados, dos proprietários ao público.
Numa redação, cultivam-se os sete pecados capitais, mas colhem-se as virtudes que servem de alimento nas crises, dentro e fora dali.
Qualquer redação carrega nas costas o próprio paradoxo, da convivência entre a História instantânea e a construção contínua de fatos quase sempre inacabados, sedentos por explicação e contexto.
Nesta terça-feira, 31 de janeiro, aconteceu a transmissão da edição 1210 do jornal da CBN Santos – a última depois de 4 anos de atividade da rádio em terras caiçaras.
Em pouco mais de duas horas, jornalistas e técnicos da emissora transitaram por um caldeirão de sentimentos e emoções, que talvez resuma o que é o Jornalismo contemporâneo e o que significa a ausência dele.
O vácuo da mudez
Logo no começo do jornal, todos estavam concentrados em executar o roteiro como se fosse um dia normal.
Uma batalha perdida, pois o jornal de terça-feira, 31 de janeiro de 2017, era único. Cedo ou tarde, todos se renderiam às evidências da quebra da rotina.
Hoje, última vez. Amanhã, o vácuo da mudez.
O repórter Vitor Anjos tentava atender aos chamados de Whatsapp, quase 100% cumprimentos e lamentações dos ouvintes. Ele parou o que fazia, se virou e disse:
“Estou me sentindo mal. Dia esquisito. Parece um velório”
A melancolia se misturava com a resignação. Junto com Vitor, Alex Frutuoso, profissional experiente e símbolo de serenidade, conversaram sobre as rescisões contratuais, a maior preocupação de quem tem filhos – Alex se mudou para Santos recentemente – diante de um cenário em que 15 profissionais foram demitidos.
Ambos são o retrato do jornalista brasileiro da atualidade, que precisa de mais de um emprego para conseguir equilibrar as contas e sustentar uma família.
Troca de microfones
O apresentador e editor Oswaldo Júnior parecia ter formigas subindo pelas pernas. Indignado no ar, marca pessoal do âncora, ele tentava manter o sorriso e a descontração fora dele. Oswaldo estava mais inquieto do que o tradicional. Entrava e saia do estúdio a cada intervalo. Não dava as broncas habituais. Dava a impressão de contar até dez a cada matéria no ar, momento em que olhava para o estúdio à procura pelo diagnóstico do ambiente além dos vidros.
O cozimento virou fervura quando Oswaldo viu os técnicos da Saudade FM, rádio que assumirá a frequência da CBN-Santos a partir de meia noite, trabalhando nos cabos, dentro e fora da redação.
Um deles sorriu para o estúdio. Entre a ironia e a simpatia, Oswaldo absorveu a primeira hipótese, o que não surpreende nem representa demérito frente aos bastidores da troca de microfones.
O sorriso bastou para que Oswaldo se mexesse e relatasse o desrespeito com que os profissionais da CBN estavam sendo tratados. Era um serviço que poderia esperar, que poderia ser feito após o programa, quando o movimento da redação fosse menor.
Oswaldo entendeu como provocação e, após uma queixa aos tubarões do aquário, os técnicos deixaram a emissora. O serviço e o constrangimento ficariam para mais tarde.
A redação ficou mais apertada com a chegada de três repórteres que passaram pela emissora. Mayara Rached, Guilherme Pradella e Carol Bertholini são filhos da escola Oswaldo/CBN e adicionaram pitadas de nostalgia e saudade no caldeirão chamado jornal n.1210.
Mayara, de maneira involuntária, injetou bom humor numa atmosfera de incerteza. Fazer o café da redação foi o detalhe que se tornou essencial para virar o leme diante do vento instável. Aliviou as dores e conduziu os rostos para outro horizonte, pelo menos por cinco minutos. Os direitos trabalhistas foram para trás da cortina e as perguntas sobre o cotidiano de cada um receberam a luz para empurrar o espetáculo adiante.
Fora do estúdio, os repórteres ressuscitavam lembranças do comportamento do Oswaldo, o chefe-professor que os colocou no fogo, ou seja, os “intimou” a apresentar o jornal nos sábados, cheios de cultura, entrevistas longas e música ao vivo.
Lá fora, o temor pela instabilidade do mercado, as possibilidades de retorno da rádio e a recontratação dos colegas eram assuntos insistentes, que teimavam em aproximar as conversas informais de uma reunião de pauta tradicional. Não há repórter que resista a um cardápio de notícias que os engoliu.
No ar, os três entraram numa zona de cessar-fogo, ao falarem sobre suas experiências como repórteres, as coberturas importantes, como a morte do então candidato à presidente Eduardo Campos. Notícias ruins que resultavam em momentos de alta performance de cada um dos jornalistas.
Na redação, Alex Frutuoso tentava domar a concentração que sempre lhe foi cúmplice. Entrevistas precisavam ser feitas, textos a serem escritos, pensar no programa de esportes a seguir. “Um segundo só, por favor”, era o que pedia para aqueles que entravam e saiam da sala.
Era quase o sussurro de quem tentava cumprir a última missão sem levantar a bandeira branca ou hastear a bandeira da CBN a meio pau.
“Oswaldo, espere um pouco, estou escolhendo uma foto”, era o recado sem alterar a voz, pois o site ainda carecia de atualizações.
Do outro lado da redação, Vitor Anjos repassava as mensagens dos ouvintes, lia e-mails e mexia no Facebook.
Uma dúvida: apagar as páginas ou deixá-las inativas? Vitor conversava com Roberta, responsável pela área, e com um dos técnicos. Os pormenores avisavam que o jornal, embora seguisse para o final da última edição, ainda deixaria arestas a aparar.
Quatro anos não falecem em duas horas, lição que nenhuma faculdade pode dar.
Todos os jornalistas, sempre que voltavam a conversar sobre o final da programação, citavam a colega Roberta Caprile, recém-formada e contratada há um mês. Ela cobria a presença do governador Geraldo Alckmin, que visitava Santos para inaugurar mais um trecho do VLT. Roberta entrara ao vivo pouco antes e retornaria à redação ao final do jornal.
“E aí, professor?, me perguntou assim que chegou. “Tudo bem?” “Tudo, na medida do possível.” Só pude dizer que tudo daria certo. Que tinha competência para continuar a trabalhar no Jornalismo. Qualquer outra frase soaria artificial e mentirosa.
Naquele momento, Oswaldo anunciava – no ar – que em duas semanas teria novidades. Ele garantia que todos os profissionais seriam recontratados. Era a busca por uma nova frequência.
Minha relação com a CBN-Santos é afetiva. Estive lá como entrevistado, entrevistador, comentarista, assessor de imprensa, funções variadas que me permitiram testemunhar como a rádio que toca notícia costuma digeri-las.
Entre erros e acertos, jamais o ouvinte passou mal ou se sentiu enfastiado. O ambiente – como minha esposa Beth lembrou – reacende em mim o bichinho que sobrevive no sangue. Saí da redação, mas ela não saiu do meu organismo. Bom, me levou de volta às coberturas de Carnaval.
Até breve!
Hoje, de surpresa, Oswaldo Júnior me convidou para uma entrevista no estúdio. Os últimos 20 minutos do jornal. Antes de entrar, pensei que deveria ser simpático, animado, empolgado até. Uma forma de celebrar o Jornalismo praticado pela rádio, enquanto deixava a condição de observador.
Falhei. Quando me vi, respondia às perguntas em um tom que beirava o melancólico, de quem tinha dificuldades em se despedir. Refletia sobre o vazio que o Jornalismo deles deixará na imprensa da região. Lembrava-me das conversas preocupadas sobre desemprego, recolocação no mercado de trabalho e na perspectiva de retomada em outra frequência. Dificuldade para me concentrar, luta para não ser dispersivo. Oswaldo que me perdoe. Falhei com quase 25 anos de experiência. Humano.
Até logo, meus colegas da redação CBN-Santos. A história de vocês não teve um ponto final. Foi somente a respiração de uma vírgula.