Texto porNathalia Ilovatte

Entrevista com Bianca Pyl, jornalista que denunciou o caso Zara

Circulando pelo shopping em tempos de troca de coleções, as placas de “sale” (que não sei por que diabos substituíram a boa e velha “liquidação”) suscitam em muita gente uma vozinha latente que diz “que mal tem? é só uma!”. Acontece com todo mundo uma vez ou outra (ou todo dia), principalmente em tempos de blogs de moda, em que a gente acorda, acessa os feeds e dá de cara com milhares de informações sobre o que e onde consumir, transformando o ato de comprar o que quer que seja em algo corriqueiro e que não requer muita reflexão.

Por isso, o trabalho da jornalista santista de coração Bianca Pyl não poderia ser mais importante. Bianca faz parte da ONG Repórter Brasil, que denuncia casos de trabalho escravo contemporâneo, e é uma das profissionais por trás da matéria sobre escravidão em uma confecção que fornece peças para a Zara. O trabalho de apuração e denúncia feito por Bianca é fundamental para que saibamos dos efeitos do nosso aparentemente inocente consumo e mudemos alguns de nossos hábitos.

A paranaense crescida do canal 2, formada na Unisanta e lançada no jornalismo pelo caderno Galeria de A Tribuna e pela AT Revista conta ao Juicy Santos como foi feito o flagrante na confecção e como vê o jornalismo praticado na Baixada Santista.

JS – Você é santista, certo? Onde estudou? Onde trabalhou?

BP – Na verdade sou paranaense! Mas vivi minha vida entre Santos e São Paulo e todo mundo aqui em SP me considera caiçara. Sempre morei no canal 2 e estudei em uma escola estadual, o Marquês de São Vicente. Depois fui para a Unisanta fazer Jornalismo. Enquanto morei em Santos trabalhei no Jornal A Tribuna, no caderno Galeria e depois na AT Revista. Quando me formei vim direto pra Sampa trabalhar com jornalismo social, que foi tema do meu TCC (feito junto com Michelle Barreto). Meu primeiro emprego foi na Revista VIração – um projeto de Educação e Comunicação que trabalha com jovens do Brasil todo, tive a oportunidade de trabalhar com adoelscentes de Cidade de Deus, no RJ, com jovens indígenas em São Gabriel da Cachoeira, no Amazona, entre outros.

JS – O que acha do jornalismo santista e dos veículos da região?

BP – Eu acho que falta veículos na Baixada. Confesso que parei de acompanhar há 2 anos e talvez a coisa tenha mudado muito de figura, mas até onde acompanhei há hegemonia de um determinado grupo familiar e dois jornais tentando ter espaço. Acho que os blogs são o “pulo do gato” porque não exigem recurso para começar, sabe? Lógico que o jornalista não vai conseguir viver só com o trabalho do blog, pelo menos no início não, infelizmente, mas ele terá mais independência para fazer matérias críticas. Eu sinto falta de matérias mais sociais, sabe? Que reflitam os problemas sociais ambientais da região.

JS – Você fez alguma reportagem investigativa quando trabalhava em Santos?

BP – Não tive espaço pois permaneci aí durante a faculdade só e trabalhei em um jornal que não costuma valorizar estagiários. Uma vez, em uma aula sobre “pautas” o professor pediu para produzirmos uma, eu fiz uma bacana sobre equoterapia e entreguei. No sábado seguinte minha ideia estava em um jornal local e eu fiquei sem nota porque o professor perdeu meu trabalho.

JS – Como rolou a reportagem sobre a Zara? Como vocês ficaram sabendo da escravidão e conseguiram o flagrante?

BP – Bom, antes de dizer sobre o caso Zara, acho que é legal explicar sobre a ONG Repórter Brasil (onde eu trabalho há 3 anos). A RB trabalha há 10 anos com essa questão de trabalho escravo contemporâneo, a ONG faz parte da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e foi convidada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP) – do Ministério do Trabalho e Emprego – para integrar o Pacto pelo Trabalho Decente no Setor Têxtil (ufa! prometo que vou parar de citar nomes imensos, rs). Um dos compromisso assumidos pela SRTE/SP era intensificar as fiscalizações no setor e o nosso é o de acompanhar as fiscalizações para produzir conteúdo e difundir informações sobre trabalho escravo contemporâneo. Então, por conta disso ficamos sabendo de todas as ações e assim foi com o caso Zara.

Eu fui acompanhar uma ação do Ministério Público do Trabalho em Americana (SP) e lá foram encontradas calças da Zara sendo feitas por trabalhadores que viviam e trabalhavam em condições degradantes.  Para a SRTE/SP esse foi um indício de problemas na cadeia produtiva da Zara. Então eles fizeram uma auditoria na própria Zara e nos documentos fiscais da empresa. Conseguiram mapear 33 oficinas irregulares – isso falando de só um fornecedor (os fornecedores são contratados pela marca para produzirem as roupas, só que na maioria dos casos eles repassam o trabalho para diversas pequenas oficinas, em muitos casos irregulares e com trabalho escravo).

Bom, a partir do mapeamento iniciou-se a fiscalização in loco nas oficinas e eu fui junto verificar as condições e produzir a reportagem. Então, todo o meu trabalho foi feito em parceria com o MTE.

JS – Em 2010 você também fez uma matéria sobre trabalho escravo nas confecções de peças da Marisa. Houve, de lá pra cá, alguma apuração para verificar se isso voltou a acontecer? Podemos ter certeza de que, uma vez denunciadas, as marcas passam a se preocupar com a procedência das roupas?

BP – Então, na verdade o caso Marisa quem fez foi meu editor, o Maurício Hashizume, eu fiz a da Pernambucanas, Collins, 775 e coletes do IBGE. Pela experiência que tenho (desde 2009 acompanho as fiscalizações no setor e o trabalho do MTE) pouca coisa mudou. As empresas estão acordando agora para isso porque a mídia está repercutindo os flagrantes. Eu sei que a Marisa, por exemplo, assinou um Termo de Ajustamento de Conduta com o MPT prometendo uma série de ações para mudar a situação. Mas isto ainda está em fase de implementação. O que eu posso dizer é que se a empresa quiser ela faz, porque dois auditores fiscais conseguem mapear a cadeia produtiva e detectar o problema, como essas empresas não conseguem ter controle de quem costura para elas? Isso não significa que seja fácil, mas é possível.

Nem toda marca passa a se preocupar, como é o caso da Collins, que só quando a Defensoria Pública da União moveu uma ação ela se mexeu pra assinar um TAC. Tem empresa que simplesmente ignora a fiscalização e aguarda a decisão judicial (que costuma demorar e como as marcas têm grandes advogados…).

Infelizmente não podemos ter certeza, pelo menos não até agora. Mas acredito que o trabalho que está sendo feito pela SRTE/SP é pioneiro e futuramente a situação deve mudar no setor.

JS – O que acontece com os escravos das confecções depois do flagrante? Eles são deportados?

BP – Bom, o trabalhador escravizado é resgatado – os brasileiros retornam ao estado de origem, mas no caso dos bolivianos eles preferem ficar aqui. Então, é oferecido a eles um abrigo (por meio da Secretaria de Justiça do Estado de SP). Não, eles não são deportados! Por mais que estejam sem documentos aqui é importantíssimo frisar que eles são vítimas de dois crimes de direitos humanos: tráfico de pessoas e trabalho escravo. Além disso, há decretos assinados pelo Brasil que permitem que esses trabalhadores continuem no Brasil e trabalhem aqui e tenham os mesmo direitos que qualquer cidadão aqui – paguem imposto, etc. Eles não devem ser deportados. Devem ter apoio social e psicológico (porque há casos de violência física e até sexual) para se estabelecerem aqui de forma digna porque não podemos ignorar que eles também geram riqueza pro nosso país e não é porque não têm documentos que devem ser explorados.

Assim que acaba a fiscalização, eles ganham uma Carteira de Trabalho provisória, a DPU ajuda na regularização dos documentos e estamos iniciando um projeto aqui na ONG, em parceria com outros atores sociais, para que as vítimas de trabalho escravo nas oficinas sejam contratados de forma regular por fornecedores de um grande magazine.

JS – O que podemos fazer agora que sabemos do trabalho escravo? Boicote às marcas é a solução? O que você sugere?

BP – Enquanto consumidores podemos e devemos boicotar sim! Não adianta vir com o argumento de “ah, não vai fazer diferença”. Ok, se sua consciência não se importa, vá em frente. Mas há várias outras opções, então por que comprar da Zara sabendo que há trabalho escravo em sua cadeia produtiva? Compra em outra que não teve nenhuma denúncia (pelo menos por enquanto rs). Já que as peças da Zara não são baratas, com o mesmo valor você compra em outra.

Além de boicotar devemos debater o tema, nos informarmos e difundirmos (principalmente via redes sociais) as informações que tivermos sobre empresas que usam trabalho escravo, agridem o meio ambiente, exploram e assediam moralmente seus empregados. O ato de consumir deve ser encarado como o ato de votar (tá, nem todos levam a sério, mas…) você está apostando naquela empresa, então pense um pouquinho mais antes de passar o cartão.

JS – Fazer essas reportagens mudou sua maneira de consumir?

BP – Eu mudei minha maneira de consumir quando ainda trabalhava na Revista VIração (meu primeiro emprego depois de formada). Na Vira nós discutíamos se aceitaríamos ou não a apoio de determinadas empresas para os nossos projetos. Isso me fez pensar e eu levei esta reflexão pro meu dia-a-dia. Não pense que eu sou louca e fico lendo embalagens, paranóica e tal. Mas eu minimamente me informo antes de decidir qual marca consumir. As denúncias são feitas pelos movimentos sociais no Brasil todo.